Chico, em sua produção musical, revela-se um cronista do cotidiano brasileiro. Em várias de suas canções, faz narrativa do comportamento nacional em todos os seus contextos, sejam políticos, sociais ou de relacionamentos amorosos. Nessa música, composta em 1971, ele retrata a rotina diária de um casal, onde mostra os afazeres repetitivos da vida doméstica, dando ênfase à falta de novidades, como se quisesse denunciar que, sob um regime ditatorial, teria que se resignar a um estilo de vida sem fugir do habitual. Há, nas entrelinhas, um sentido de opressão que forçava a manutenção de costumes e que ninguém ousasse sair dos padrões de vivência da época.
“Todo dia ela faz tudo sempre igual / me sacode as seis horas da manhã / me sorri um sorriso pontual / e me beija com boca de hortelã… Toda noite ela diz pra não me afastar / meia noite ela jura eterno amor / e me aperta pra eu quase sufocar / e me morde com a boca de pavor”.
É uma espécie de diário. Faz registro de todos os acontecimentos, a partir do ato de acordar. Reforça a ideia da rotina, ao falar que as atitudes da mulher são as mesmas a cada dia. É despertado por ela sempre às seis horas da manhã, com um “bom dia” expresso num sorriso quase mecânico, de tão habitual. No primeiro beijo o gosto da pasta dental bem apropriado para a saudação matinal. Sentado à mesa para a primeira refeição, o diálogo não se diferencia do costumeiro. Escuta, pacientemente, os conselhos de sempre, as advertências comuns às esposas preocupadas com o bem estar do marido. Despede-se recebendo dela o beijo com sabor de café, ao tempo em que reafirma que vai ficar saudosa na espera do seu retorno para o jantar.
Ao sair para a labuta, não consegue afastar os pensamentos de inconformação com a vida que leva. Deseja mudanças, quer novas experiências, alimenta esperanças de que um dia tudo será diferente. Chega a pensar em reagir, dar um grito de rebeldia, romper com aquela situação. Mas logo se adverte que tem uma família para cuidar e qualquer mudança pode prejudicar a sobrevivência até então garantida, embora com sacrifícios. Resolve se calar, para saborear o feijão que sua mulher havia preparado.
Na volta do trabalho, a encontra ansiosa no portão, quando ouve as invariáveis manifestações de amor. No beijo apaixonado o despertar de um sentimento de felicidade próprio dos eternos enamorados. Já recolhido ao aconchego do lar, escuta os apelos para não sair. Ela teme perdê-lo para as tentações noturnas das ruas. E se entrega às intimidades conjugais com a força máxima da troca de prazeres. Suas carícias se misturam a mordidas de amor, com incontidas sensações de pavor provocadas por ciúmes possessivos.
Uma das cem crônicas contidas no livro “UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS CANÇÕES DE CHICO”, em sua segunda edição. Os interessados na sua aquisição devem entrar em contato com o autor pelo e-mail: [email protected]
Rui Leitão